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terça-feira, 12 de março de 2024
A DOR É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE
A editora pulsava. A correria era enorme para conseguirmos lançar alguns livros antes de terminar novembro, a tempo de os inscrever para concorrer aos prêmios da Academia Brasileira de Letras, assim como aproveitar o impulso de vendas do Natal. Do contrário, fecharíamos o período com as contas no vermelho. Revisores, diagramadores, ilustradores, tradutores e editores se esforçavam para cumprir prazos e metas sem renunciar à qualidade das obras. Apesar da pressa, o entusiasmo e a alegria eram a tônica do antigo casarão que abrigava a editora. Sabíamos que aqueles livros tinham o poder de municiar os leitores em suas jornadas pessoais, sem esquecer que a arte é somente o farol. A navegação é pessoal. O saber não transforma, apenas oferece subsídios ao movimento evolutivo. Ferramenta e construção estão interligadas, mas não são a mesma coisa.
Uma das ilustradoras, a Rafaela ou simplesmente Rafa como todos a chamavam, era uma profissional de raro talento. Trabalhávamos juntos desde os tempos da agência de propaganda. Sem abdicar do seu jeito descontraído e bem-humorado, tratava as tarefas com extrema seriedade e competência. Era uma mulher bonita, com cabelos que alteravam de cor e corte na breve constância das luas no céu, como se as constantes mudanças faciais fossem indispensáveis ao seu espírito irrequieto, renovador e criativo. Uma marca registrada da sua personalidade e identidade. Com cerca de quarenta anos de idade, era mãe da Clara e estava casada com o João, um engenheiro mecânico, seu primeiro e único namorado. Durante todo esse período, englobando agência e editora, eu estivera poucas vezes com o seu marido. Mesmo nas solenidades em que a Rafa recebeu prêmios pelo seu belo trabalho, ele nunca esteve presente. Foram muitos os prêmios conquistados por ela. Naquele ano, as ilustrações apresentadas estavam aquém do seu reconhecido talento. Bonitos também não estavam o sorriso e os olhos da ilustradora, como se um verniz opaco impedisse o brilho original que sempre a caracterizara. Até os cabelos pareciam abandonados como se fossem a fotografia de uma alma em desalinho. A editora responsável por um dos projetos, a coletânea de livros sobre um universo ficcional e fantástico habitados por seres antropomórficos, havia recusado por três vezes o desenho da capa. De fato, não estavam bons. Uma situação que jamais havia acontecido. Fiquei preocupado com ela. A convivência profissional erguera uma sólida amizade, embora eu pouco soubesse sobre alguns aspectos da sua vida. Rafaela gostava de falar sobre a Clara, porém, era muito reservada quando o assunto era o João. A convidei para um café em uma doceria aconchegante próxima à editora, com mesas em um pátio arborizado e a céu aberto no fundo da loja.
Devidamente acomodados debaixo de uma mangueira frondosa e centenária, fui direto ao assunto. Havia uma tristeza ou preocupação que ela não conseguia disfarçar, a ponto de a prejudicar no trabalho, como se o ímpeto criativo que sempre encantara a todos estivesse bloqueado por uma muralha de sofrimento. Era preciso descontruir o obstáculo para que a vida tornasse fluir com intensidade, leveza e alegria. A Rafa bebeu um gole de café, me olhou por alguns instantes, como se avaliasse se estava disposta a prosseguir com aquela conversa e murmurou que o motivo de estar mal era o João. Perguntei se era algum problema de saúde ou no emprego. Ela disse que não. Eram questões relativas ao casal. O marido era um bom homem, mas ela não estava feliz. Indaguei há quanto tempo se sentia assim. Havia tanto tempo que nem mais conseguia precisar, revelou. Não se tratava de uma dor instantânea, mas de um sofrimento acumulado ao longo dos anos. Uma lágrima rebelde escapou para confessar a dor reprimida que ela não conseguia mais conter. Falei que ela precisava transbordar, chorar e falar até esgotar os sentimentos que a sufocavam. Ouvir-se como passo primordial para se conhecer melhor. Éramos amigos, eu estava disposto a ajudar. Rafaela tornou a me olhar e disse não com a cabeça. Por eu ser amigo, o meu olhar carecia de isenção. Não era só isto. Com honestidade, falou que, apesar da minha boa vontade, não me considerava apto para a tarefa. Mas sim, precisava de ajuda. Sugeri o Heitor, um amigo psicanalista, também monge da OEMM. Depois lembrei que ele estava de férias em Buenos Aires, onde a família residia. Senti que a ilustradora não poderia esperar mais. Os seus olhos revelavam a urgência da situação. Propus algumas pessoas que poderiam ajudar. Uma a uma, ela as descartava. Ao final da lista, Rafa revelou com quem gostaria de conversar. Cléo, a bruxa. Confessou que sempre teve vontade de a conhecer. O momento era propício. Desconversei. Falei que não passava de uma lenda urbana. Os textos sobre a bruxa eram somente frutos da imaginação de um escritor. Rafaela disse saber não ser bem assim. A criatividade tem como limite não se distanciar da realidade além de determinado ponto, sob o risco de se tornar inverossímil ou vazia por absurdo. Ela insistiu muito. Após várias negativas, acabei por capitular. No entanto, a avisei sobre o risco do imponderável. Nem sempre eu conseguira a encontrar nas vezes que a procurei. A escolha nunca coube a mim, sempre à Cléo.
Era um segunda-feira de outubro, com céu azul e agradável brisa marinha. A Pedra Bonita, um enorme maciço de granito debruçado diante do Atlântico, de onde se avista boa parte do Rio de Janeiro, ancora uma inusitada energia. Um lugar maravilhoso para pensar, rezar e meditar. Lá tinha sido o único local onde eu encontrara a mítica bruxa carioca, a qual toda a cidade ouvira falar, mas muito poucos tiveram a oportunidade de a conhecer pessoalmente. Daí a origem de se tratar de uma lenda. Deixamos o carro próximo a rampa de voo-livre e subimos a pé até o platô numa caminhada escarpada de cerca de quinze minutos. Não havia ninguém lá em cima. Eu gostava de me sentar debruçado para o oceano e de frente à face do profeta esculpida pelo vento, sal e sol ao longo dos séculos na montanha em frente, a Pedra da Gávea. Ao nos aproximar, para minha surpresa, uma mulher morena com longos cabelos negros, usando um vestido de tecido esvoaçante e multicolorido, nos aguardava de braços abertos à beira do penhasco. Rafaela me olhou por um breve instante, como se perguntasse se era quem ela imaginava. Eu disse sim com a cabeça. A ilustradora disparou em corrida para ser acolhida em um demorado e aconchegante abraço. As lágrimas foram muitas, carregadas de um sentimento doloroso de quem não mais suportava se reprimir. Caso não o extravasasse, explodiria em fúria ou implodiria em tristeza. Assim fazem as dores negadas ou contidas; por isso precisam ser tratadas antes que nos destruam. Ao final do choro, Cléo pontuou: “Os velhos sofrimentos precisam sair para que haja espaço para novos sentimentos. A dor é como aquele convidado sem educação, que vai se espraiando dentro da nossa casa sem pedir licença nem se valer de qualquer dose de parcimônia ou respeito. Mexe nas gavetas, deixa tudo bagunçado; come o que tem na geladeira, sem se importar se ficaremos com fome; dorme na nossa cama e nos obriga a deitar no chão. Joga fora as roupas que estão no armário para que passemos a usar o sofrimento como uma inevitável vestimenta. A dor nos afasta de quem somos, nos descaracteriza, faz emergir o que há de pior em nós, a ponto de nos levar a desacreditar no bem. Como cada pessoa mora dentro de si mesmo, acabamos por nos sentir intrusos e indesejáveis em nossa própria casa. Depois de algum tempo, acreditamos que é mesmo assim, que conviver com a dor seja algo normal e sem solução. Um engano comum e devastador. Jamais viva sob o prisma dessa crença sombria. Quando os olhos são bons todo o universo é luz. Todo sofrimento revela o equívoco na elaboração de uma experiência. A desconstrução das agonias acontece no reprocessamento das velhas situações através de um entendimento diferente, oriundo de novos conhecimentos e de uma percepção e sensibilidade mais apuradas. O passado é escola ou prisão, a depender da clareza alcançada pelo olhar. Ao conseguir observar um acontecimento sob um prisma mais elaborado, a paleta de escolhas passa a disponibilizar cores até então impensadas. Assim é possível oferecer extraordinários tons e inacreditáveis pinceladas capazes de alterar definitivamente a realidade. O amor brota para curar a dor”.
A bruxa perguntou se a Rafaela estava disposta a realizar uma importante viagem, na qual encontraria com uma parte de si mesma que, por decisão própria, tinha deixado na gaveta de um dia qualquer. Franziu as sobrancelhas e a alertou: “Não é possível esquecer ou abandonar quem somos”. Em seguida, avisou: “É como se você estivesse numa plataforma de embarque. Caso não se sinta pronta, tem o direito de adiar a viagem. Nada a impede de continuar onde está”. A ilustradora assegurou estar disposta a fazer a jornada. Essa era a razão de estar ali. Cléo a alertou: “O trajeto até alma quase nunca é rápido ou fácil. Trata-se de um percurso repleto de paisagens inóspitas e encontros desagradáveis. Não é um passeio para turistas, mas uma aventura para desbravadores. Terá que rever situações e pessoas que gostaria de ter esquecido, enfrentar medos e dores que a assustam e atrapalham o sagrado sono da noite. Ao final, terá de lidar com escolhas angulares”. O semblante de Rafaela evidenciava três virtudes fundamentais à viagem: vontade, coragem e amor-próprio. A bruxa sorriu satisfeita ao perceber e disse: “É preciso que traga a dor à tona, de modo que nenhuma fração reste escondida dos seus olhos, para que possa a observar por inteira, através de inúmeros ângulos, de modo que a possa compreender sob um prisma inusitado e se torne capaz de a desmanchar com as próprias mãos. Ninguém fará isso por você. Trata-se de uma tarefa personalíssima, porquanto, impossível de transferir. Quando imersos na escuridão de um quarto sem janelas para a vida, tudo e todos são amedrontadores”. E tornou a alertar: “Deixe a luz entrar. Jamais tenha medo de entrar na arena da verdade para enfrentar a sua dor. Do contrário será devorada por ela”.
Rafaela questionou quais armas a tornaria apta para lidar com tamanha dor. A bruxa foi sucinta: “Basta uma: amor por si mesma. Nada mais é capaz de derrotar a dor. Tampouco existe sofrimento imune ao amor”. Em seguida, alertou: “O amor tem nuances e camadas de profundidades. Terá que encontrar em si um amor desconhecido, que nunca imaginou possuir. Porém, jamais duvide. Ele existe. Apenas a aguarda em semente. Para que floresça terá de despertar uma jardineira chamada alma. Nela reside a essência do seu poder. Essa é a outra de si mesma, aquela ainda desconhecida por você em você. A sua melhor parte, capaz de reverberar a luz que dissipará definitivamente a escuridão da dor”.
Rafaela admitiu que, apesar da sua disposição em prosseguir, tinha receio de não conseguir enfrentar os próprios sofrimentos. Eram grandes e antigos. Desconfiava já ter se acostumado a viver com eles. Talvez sofrer fosse a sua sina, falou com resignação. Um discurso que revelava a costumeira dificuldade de romper com os usuais padrões de aprisionamento mantidos pelo receio de que as mudanças gerassem dores ou arrependimentos ainda maiores. Como se o medo dissesse: me deixe com essas dores, ao menos já as conheço. Com o tempo me acostumarei a elas. Cléo franziu as sobrancelhas e a corrigiu com firmeza: “Jamais se acostume com o sofrimento, tampouco acredite ser você pequena demais para o enfrentar. Você é maior do que o maior dos seus sofrimentos. Todos somos. Jamais os veja como castigo ou punição eterna; não há armadilha mais perigosa. Não lide com o sofrimento como quem está diante de um inimigo, eis um erro comum. Veja-se como de frente a um mestre disposto a ensinar algo que ainda desconhece sobre si mesma, como nas histórias mitológicas em que mulheres extraordinárias precisam enfrentar poderosos adversários para conquistar o mais extraordinário de todos os poderes: tornar-se dona da própria vontade e destino, um pressuposto essencial à genuína liberdade. Na jornada que nos conduz ao encontro da alma, as conquistas consistem em harmonizar as emoções desequilibradas que corroem a alegria e devoram os dias. Faz-se necessário compreender como elaboramos equivocadamente as experiências vividas, oferecendo condições para que surgissem e nos dominassem. Descontruir cada sofrimento e medo através de um olhar cada vez mais claro e aperfeiçoado resume o trabalho indispensável à construção da paz interior”. Depois, concluiu: “A elaboração da experiência ainda não terá terminado enquanto restar um resquício, ainda que mínimo, de dor”.
A bruxa prosseguiu: “Aquela que somos nem sempre retrata quem poderíamos ser. Não cabemos nas caixas minúsculas que querem nos colocar. São pequenas demais para o tamanho que temos. Não se trata de delírio a nítida sensação de estar sendo espremida. É real. Sonhos e alma são grandes demais para serem colocados e esquecidos dentro de uma caixa qualquer”. Fez uma gesto com a mão, como quem diz para ter cuidado e a lembrou: “Não se engane, por vezes estamos espremidas em caixas que nós mesmas decidimos entrar e ficar”.
Em seguida, perguntou: “O que a faz sofrer tanto?”. A ilustradora explicou que era casada com um bom homem. João era honesto, trabalhador e não deixava faltar nada em casa. Ao menos no concernente ao aspecto material. Era também um pai atencioso e preocupado com a Clara. Contudo, quando o assunto versava sobre as necessidades pessoais ou a vida profissional da esposa, ele se mostrava desinteressado. Desde sempre. Para o João eram faces inexistentes da identidade da Rafaela. As suas angústias e conquistas eram de somenos importância para o marido. Em casa ou junto aos amigos, ele falava de seus projetos e ambições como se fosse o comandante-mor de uma nave, sendo ela uma mera passageira sem direito a opinar sobre a rota e o rumo que também definiam a sua existência. Relatou alguns fatos e acontecimentos, antigos e recentes, que ilustravam essa postura. Em resumo, a sua vida, vontades, interesses e vitórias pareciam sem importância para o marido. No decorrer dos anos se anulara a ponto de se tornar invisível ao João. Cléo a interrompeu para tornar a corrigir o olhar equivocado: “De se sentir invisível para si mesma. Nada podemos fazer se alguém se nega a olhar para gente. Porém, recusar-se a olhar para si mesma é uma escolha. É abdicar de um poder, é renunciar ao autocuidado, um ato de desamor. Não cabe nenhuma reclamação por parte de quem se abandona ou se anula. Você não pode esperar de ninguém o que se recusa a fazer em proveito próprio”. Fez uma pausa antes de concluir a observação: “Você está exatamente onde se colocou. O cerne da questão não é o que deixou que fizessem com você, mas o que se recusou a fazer por si mesma. Eis a origem de tanta dor”.
Rafa caiu em prantos. Eram lágrimas sentidas, de quem aceita a saudade do melhor que sabe existir em si, uma parte guardada em uma gaveta proibida de abrir sob o risco de ter de enfrentar uma situação indesejável ou uma verdade desconfortável. Como se fosse possível deixar de ser quem somos, de permitir que a nossa luz se apague para que outro alguém possa brilhar sozinho e, ainda assim, se sentir feliz. Uma luz nunca apaga outra. Juntas se somam para iluminar mais longe e com maior clareza o caminho que decidiram trilhar juntos. Cléo explicou: “Esse entendimento é a base de uma união. Do contrário, serão apenas duas pessoas sob um mesmo teto a dividir despesas e tarefas, jamais formando um casal na acepção nobre e sagrada do conceito e da palavra. Compartilhar alegrias e conquistas mútuas é o princípio da felicidade comum. Cuidar de si e estar comprometido com as necessidades do outro, mantém a individualidade sem dar vez ao individualismo. Acrescentar sem precisar se anular é a tônica do crescimento conjunto. Não há felicidade sem a indispensável prosperidade interior. De nada adianta estar rodeada das mais belas flores se alma vive num deserto de conquistas pessoais. De outra face, quando alma mora em um jardim toda a aridez do entorno arrefece ou desaparece”. Rafaela disse ser uma profissional muito bem-sucedida. A bruxa deu de ombros e questionou: “Se isto basta, por que tanto sofrimento e tristeza?”. A ilustradora fechou os olhos por saber a exata resposta. Uma parte de si florescia enquanto outro pedaço apodrecia. Durante algum tempo, aquela sustentou esta. Agora, este pedaço contaminava aquela parte. Isto explicava o motivo de as ilustrações estarem aquém do seu reconhecido talento. Ninguém se mantém bem sendo somente uma fração de si mesma. Distante da busca para se tornar inteira, qualquer pessoa sucumbirá no abismo que se lançou.
A ilustradora perguntou se o melhor seria se divorciar do João. Cléo sacudiu a cabeça e a advertiu: “Não tenho a menor ideia. Ficar ou partir é uma decisão exclusivamente sua. Não cabe a mais ninguém. Enquanto não souber o que fazer, apenas amadureça a decisão. Não tenha pressa. Amadurecer não significa ficar parado esperando que a vida solucione os seus problemas. Isto não acontecerá. Amadurecer é um movimento interno de entender a decisão e o passo. Perde-se a fruta quando arrancada da árvore antes do tempo. Em contrapartida, fique atenta para não deixar que a fruta despenque e se esparre no chão por não ter sido colhida no momento certo”. Depois, sugeriu: “Não caía na esparrela do vitimismo. Assim como todos, você é responsável pelos seus sentimentos e escolhas. Se a sua vida está em mãos alheias é porque você permitiu. Viver junto não significa renunciar à própria essência, identidade e personalidade. Ninguém soma nada a ninguém ao subtrair a si mesmo. Apenas entrega o comando e aceita a condição de passageiro. Não cabe lamento nem reclamação se a viagem for desagradável”.
A bruxa orientou: “Chame o João para uma conversa. Muitos conflitos surgem dos ruídos ou da falta de comunicação. Pressupor o entendimento de outra pessoa é substituir a verdade por uma versão conveniente. Não podemos atribuir a ninguém a responsabilidade por uma carência que nunca expressamos com toda clareza possível. Alguns conseguem ler os nossos olhos e gestos; outros ainda precisam das palavras. Expresse com tranquilidade e objetividade as suas angústias e necessidades. Somente a partir de um diálogo franco e amoroso será possível entender se quem está ao seu lado é um inestimável parceiro ou um mero acompanhante. Então terá subsídios para realizar a melhor escolha. Assim como todos, você tem o direito de definir o próprio caminho e destino”.
Rafaela deixou as ideias vagarem sobre as ondas atlânticas para além de onde os seus olhos alcançavam. Cléo a trouxe de volta como se adivinhasse as palavras nunca proferidas: “O João a culpa pela gravidez não planejada de Clara, por ter se casado ainda muito jovem, enquanto os amigos viviam aventuras desprovidas de compromissos. Sente-se furtado no tempo e nas experiências que supostamente perdeu. Ele a pune com a pena severa do desinteresse, como se você fosse a ladra de uma parte importante dos momentos que não vivenciou”. Com os olhos marejados, a ilustradora disse um singelo sim com a cabeça. A bruxa comentou: “Ele desperdiça o ouro que tem nas mãos por lamentar a prata que deixou escapar”. Deu de ombros e pontuou: “Não existe argumentos para quem se nega a compreender os equívocos”. A ilustradora contou que manifestara ao marido o desejo de se divorciar. Ele não dissera sim nem não. Apenas que se quisesse ir, que fosse. Não a ajudaria em nada, tampouco iria conviver com a filha. Seria uma ruptura absoluta, tanto o marido como o pai desapareceriam por completo. Rafaela disse que não queria prejudicar a Clara. Amava por demais a filha. Já dormia em quarto separado ao dele, mas não conseguia partir. Cléo fez um gesto com a mão, como se ressaltasse o óbvio, e questionou: “Você acredita que presenciar esse formato de relação é saudável para a Clara?”. A bruxa dispensou a resposta, mas a manteve em movimento: “Você não é mais a mulher do João, mas também não deixou de ser a esposa dele. Os corações não estão mais alinhados, mas as vidas ainda estão embaralhadas. Enfim, você não é nem deixou de ser”. Cléo a olhou profundamente e a avisou: “O pior dos mundos é ficar aprisionada entre dois mundos”.
A ilustradora não disse palavra. Fechou os olhos e se deixou levar pelo silêncio e quietude do lugar para que aquelas ideias encontrassem onde morar dentro dela e a ajudassem a arrumar a casa. Não a que morava com o João e a Clara, mas a que vivia em si mesma. É esta que mantém aquela em paz. Depois de um tempo que não sei precisar, Rafaela abriu os olhos e, como quem se espanta ao descobrir um tesouro, sussurrou surpreendida com a própria voz: “A dor é um lugar que não existe. Em verdade, a dor é um lugar inventado”. A bruxa sorriu satisfeita.
Um bando de gaivotas se aproximou e envolveu a bruxa, que rodopiou ao ritmo dos pássaros. O vestido esvoaçante confundiu os meus olhos, me fazendo acreditar que eram asas. Cléo bailou sobre o maciço de granito, se afastando até desaparecer.
Olhei para Rafaela como se perguntasse e agora? A ilustradora me ofereceu um sorriso que há muito tempo eu não via. Havia ânimo e alegria em seu rosto. A dor tinha sido expulsa de casa. Desconstruímos os sofrimentos ao compreendermos a insensatez e os medos que os sustentam. Na luz da sua meninice, a ilustradora disse que precisava mudar o corte e a cor dos cabelos. Rimos. Entendi que algo tinha mudado. Uma nova Rafaela florescia no encanto daquele dia. Com toda disposição e beleza de uma pessoa que sabe para onde quer ir. E vai.
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