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domingo, 10 de dezembro de 2023

A Língua Portuguesa, aportada ao Brasil há mais de quinhentos anos, constitui-se um sistema extraordinariamente rico, que permite a comunicação entre os seus atuais 210 milhões de habitantes a despeito das inúmeras variantes de uso espalhadas nas diversas regiões. A unidade na estrutura da língua e a pluralidade revelada nas situações de comunicação pelos falantes são os pilares que asseguram a indispensável grade fixa, comum aos usuários, e a rica diversidade glossológica condicionada por fatores diacrônicos (tempo), diatópicos (espaço) e diastráticos (social). Para exemplificar, a expressão pro mode caracteriza a condição social e talvez econômica do locutor. Por outro lado, o vocábulo bacana, ainda frequente, porém em via de extinção, denuncia mais ou menos a idade do falante, porquanto termo empregado por uma geração mais provecta. E um arrastado abestado provavelmente sinaliza para a inconfundível origem nordestina de um cabra da peste. Limito a presente anotação a matutar sobre palavras e expressões condicionadas ao fator diatópico, mais precisamente acerca da linguagem peculiar praticado na região Nordeste, o cearês, ou dialeto cearense, que engloba quase todo o Estado (tirante o Cariri), parte do Piauí e parte do Maranhão. Tal dialeto coexiste ao lado de outros, como o baiano, o gaúcho, o amazônico, o recifense, o cuiabano, o florianopolitano. Torna-se oportuno o registro, uma vez que são inúmeros os falantes de outras localidades, que afluíram em expressivo número na última década para o Estado e por causa do desconhecimento de uma série de palavras e expressões pelo público coestaduano influenciado, entre outros condicionantes, pela linguagem globalizada dos meios de comunicação. Tais variações dialetais são riqueza do idioma pátrio e sinais peculiares e marcadores de nossa cearensidade. Eis alguns exemplos do cearês com breves comentários e registros extraídos do cordel. 1.Abortado Três significados: a) aquele que foi abortado, parido antes da gestação completa. Também indica o que foi produzido antes do tempo. b) malogrado, frustrado, gorado. Exemplos: O negócio foi abortado. O golpe militar foi abortado pelo governo. No cearês, porém, não é nada disso. Abortado se chama o indivíduo de sorte, feliz. Exemplo: Esse cara é um abortado, nasceu com a bunda para a lua. Veja seu emprego na estrofe de Anilda Figueredo da Academia dos Cordelistas do Crato: Há sujeito que tem sorte Mesmo um desmantelado Escapa de endemia De polícia e delegado De acidente e perigo Pois é aí quando eu digo Só tendo sido abortado! 2. Afobado Significados: pessoa impaciente, agoniada, inquieta, nervosa, apressada, raivosa. Aplica-se ao tipo atrapalhado, avexado, em função de pressa excessiva ou de impaciência. Exemplos: O jogador afobado chutou a bola para fora. Quem é afobado, come cru ou queima a boca. Estrofe de Ulisses Germano, cordelista do Crato: Uma pessoa afobada É nervosa e inquieta Anda sempre agoniada E tudo em volta lhe afeta É no gesto aligeirado Que o trejeito do afobado Perde prumo, perde a reta. 3. Baitinga Origem: vem de baitola. Há uma etimologia talvez fantasiosa que diz que o termo nasceu na construção da primeira estrada de ferro no Ceará. O capataz encarregado do assentamento dos trilhos era de origem inglesa e possuía modos efeminados. Tinha ela a preocupação com o espaçamento padrão entre os trilhos, chamado de bitola. Por influência da língua materna em que o i tem o som de ai, gritava com frequência o termo baitola em vez de bitola. Os peões por causa disso começaram a chamar o capataz de baitola. Significado: homossexual, gay, balde, veado, fresco, bicha. Empregado também para xingar alguém. Baitinga, apontado em epígrafe, é termo menos ofensivo que os anteriores. Usa-se muito nas brincadeiras entre amigos. Geralmente, não possui conotação depreciativa, dependendo, é claro, da entonação de quem emprega o termo. Exemplo: E aí seu baitinga não vai me emprestar a moto, não? Estrofe de Bastinha Job (da Academia de Cordelista do Crato) Digo com convicção Nem preciso de mandinga Pois falo com precisão O sinônimo de baitinga É o cara afrescalhado É o popular veado Tem na rua e na caatinga. 4. Birita Significado: cachaça, pinga, aguardente, por extensão qualquer bebida alcoólica. Apelido que se acrescenta a um nome de um cachaceiro, como Chico Birita, Manel Birita. Estrofe de Aldemá de Morais, da Academia dos Cordelistas do Crato “Birita” é o nome dado A um tipo de cachaça O caboclo no engenho Bebe em cuia de cabala É vendida em botequim Seus clientes: “papudim” “Pé inchado” e “arruaça”. 5.Boca quente Significado: lugar ou situação perigosa. Exemplos: Rapaz, não vá para aquela favela, porque lá é boca quente. O deputado enfrentou uma boca quente ao conversar com os eleitores. Estrofes de Josenir de Lacerda, cordelista do Crato: Um perigo é boca quente Porco novo é bacurim Atrevido é saliente Quem não presta é corja ruim Dedo duro é cabueta A perna torta é zambeta Coisinha pouca é tiquim. ...... Quem se mete em boca quente Enfrenta risco e perigo Está sujeito a uma surra Ou mesmo ao pior castigo Com encrenca se depara Termina quebrando a cara Ou arranjando inimigo. 6. Do tempo do bumba No tempo do bumba meu boi. Significado: De uma época muito antiga. São do tempo do bumba a época dos bondes em Fortaleza; a escada rolante da Lobrás; o hábito de tomar pega-pinto na Praça do Ferreira, de lanchar no Abrigo Central; comprar nas Casas Pernambucanas do centro da cidade; fumar cigarro Bebê; tomar banho de chuva nas bicas da casa; andar no Circular da Empresa Moreno. Estrofe de Nezite Alencar (Academia dos Cordelistas do Crato) O que é "tempo do bumba"? É tempo velho passado, Aquilo que não é mais, Mas será sempre lembrado Tudo que saiu de moda E está no baú guardado. 7. Eita pau Interjeição usada no Nordeste para exprimir espanto. Há uma tênue distinção entre Eita e Eita pau. Significados: Eita (sozinho) exprime espanto, surpresa, contentamento, vibração, estímulo. Exemplos: Eita, vida. Eita, bicho feio. Eita pau é também espanto, surpresa diante de algo ruim. Diz-se também Eita ferro! Luiz Gonzaga tem o verso: “Eita, Paraiba, mulher macho sim, senhor”. Estrofe de Dalinha Catunda da Academia Brasileira da Literatura de Cordel do Rio de Janeiro. Eita pau! Papai dizia, Quando eu fazia besteira: Esta menina levada Vai entrar no pau pereira! Batia, sim, sem ter dó, Descia mesmo o cipó, Nesta morena brejeira. 8. Em riba Riba é a margem elevada de um rio; colina sobranceira a um rio; ribanceira. Dois significados: a) tudo em cima tudo bem, tudo certo. b) além do mais. Exemplo: Não me pagou, ainda em riba, me disse uns nomes feios. Estrofe Bastinha Job (Academia dos Cordelistas do Crato) Tá em riba é tá trepado Aqui no nosso Nordeste Um termo bastante usado Na cidade e no agreste Tô em riba, tô por cima Trepo no metro e na rima E não há quem me conteste. 9. Escambau Origem provável: no Brasil Império, era comum os portugueses que aqui viviam fazer o escambo, que consistia na troca direta de mercadorias sem o uso de moeda corrente, na maioria das vezes, gêneros de última necessidade, em uma grande feira chamada escambau. A tese mais plausível, porém, é de que o termo deriva a palavra de cambada (porção de coisas, cambulhada), pela “alteração de sufixo para -al, ‘grande quantidade’, e depois grafado com -u, seguindo a pronúncia do -l final, predominante no Brasil”. Escambau tem duas acepções básicas. A primeira e mais empregada é a de “mais um monte de coisas”, um “et cetera.” informal e enfático. Refere-se a um conjunto alargado de coisas, mencionadas ou para além das já mencionadas. Exemplo: Saiu de férias levando barraca de camping, fogareiro, papagaio e o escambau. A segunda acepção faz de escambau uma espécie de interjeição de negação, substituindo palavrões em frases como esta: Vítima da sociedade, o fulaninho? Vítima o escambau! Trova do cordel de Josenir de Lacerda: Bater fofo é não cumprir Etecetera é escambau Sujar muito é encardir Quem acusa, cai de pau Confusão é funaré Carta curinga é melé Atacar é só de mau. 10. Distreinado Sentido no cearês: sem graça, encabulado. Exemplo: Depois que fez esta besteira, ficou todo distreinado. Trova de Josenir de Lacerda, famosa cordelista. Se o sujeito tá confuso Tristonho e encabulado Com vergonha, constrangido Feito um cão escorraçado Tem gente que olha e diz: - Aquele pobre infeliz Tá sem graça, "distrenado". 11. Xeleléu Sinônimos: a) babão; baba ovo, adulador, capacho, chaleira, escova botas; lambe-botas. b) caminhão pau de arara, de retirantes nordestinos. O termo xeleléu é muito usado também no Rio Grande do Norte e tem um efeito bastante expressivo. Verso de Josenir de Lacerda, poetisa multicitada: A rede velha é fianga Com raiva é aporrinhado Careta feia é muganga Baitinga é mesmo o viado Bajulador, xeleléu Sem jeito é malemanhado. 12. Ispiricute Origem: Influência da presença dos soldados norte-americanos no Ceará. Durante a Segunda Grande Guerra, os americanos usaram durante alguns anos a Base Aérea de Fortaleza como ponto de apoio antes da viagem para o Norte da África e o sul da Itália. Havia as famosas Garotas Coca-Cola, meninas da sociedade local que nos finais de semana se aprontavam para paquerar com os garbosos pilotos e oficiais americanos. Origem provável: vem do inglês "she's pretty cute". Usado no Nordeste e termo muito comum no Ceará. Sentidos; Desinibida, faceira, bonitinha, faceira, vaidosa. O termo foi usado no filme Cine Holliúdy de Halder Gomes. Mais um estrofe de Josenir de Lacerda, multirreferenciada cordelista: Se cheia de babailoque É ispiricute ou dondoca Ligeiro é “que nem um traque” Agachado é tá de coca Sem rumo é desembestado O faminto é esguerado Bolha na pele é papoca. 13. Abiúdo Tem sentido pejorativo. É a corruptela de abelhudo (palavra dicionarizada). Trata-se de pessoa curiosa, que quer saber de tudo, fofoqueiro, intrometido, indiscreto, curioso, importuno, indivíduo que se mete nas conversas, dar palpites na vida dos outros. Exemplo: Essa menina é muito abiúda. É do cordelista Henrique César Pinheiro este verso: Ele não é diferente É também muito abiúdo Se faz de abirobado Para se meter em tudo Também só vive melado Fedorento, bem imundo. 14. Ruçara Talvez venha de juçara,(palmeira delgada e alta). O vocábulo é usado por Pedro Nava, que é de origem cearense, no livro Chão de Ferro. Significa “coceira de origem alérgica. É o comichão produzido pelo contato com diversas espécies de planta com a pele humana, por exemplo com a ramagem do feijão, com o arrozal, milharal, com cipó de fogo. Ruçara está catalogada entre as doenças que somente nordestino tem, como dores nos quartos, dor nas juntas, difluço, espinhela caída, tosse de cachorro, gastura, dor de viado, vista cansada, estalecido, doença nos nervos, fervião no corpo, passamento, nó nas tripa, frieira,dordói, remela nos zói, curuba, pito frouxo. O cordelista Henrique César Pinheiro registra as dificuldades para se reconhecer doença de nordestino: Sem conhecer nossa língua E as doenças tropicais Que em muitas medicinas Não faz parte dos anais Além das dificuldades Das falas regionais. Moco, tosse de cachorro, Caduquice, pé inchado, Queimadeira, farnizim, Brotoeja, empazinado, Ruçara, canela triada, Vento caído, empachado. 15. Catrevagem Derivado de catervagem, de caterva (grupo de pessoas, de animais ou de coisas, de pessoas ordinárias, desordeiras, malta, súcia). Três sentidos: a) grande quantidade de objetos; sobras de material de construção; sucata; objetos sucateados. Coisas em desuso, sem serventia. Resto de coisas velhas reunida em determinado lugar. b) reunião informal, encontro casual, bate-papo divertido, animado. c) mulher feia, magra, que ninguém quer mais. Verso de Carlinhos Cordel (de Pernambuco) Distração, brincadeira Lá se chama fulerage Também algo que não presta Porcaria ou catrevage O Ceará tem cultura E uma bela linguagem.

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